Como foi o artigo?

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Assalto irritado
2018/02

Editorial: Afogando-se num mundo de sal – Dandara e a seca da informação

[Divulgação: De acordo com nossa Direito de Resposta, este é um post convidado que oferece um contraponto alternativo a um artigo publicado recentemente no One Angry Gamer sobre o jogo Dandara.]

AVISO LEGAL: Eu sou brasileiro. HUEHUE GIBE MONI EU RELATO Maldição à parte, sim, tenho uma visão tendenciosa de jogos e desenvolvedores presos no mesmo purgatório que eu. Tentarei manter uma abordagem neutra e baseada em fatos sobre o assunto, embora você esteja convidado a verifique todas as fontes usadas para fundamentar minhas afirmações e corrija qualquer erro factual que cometi no artigo.

Às vezes é apenas o vento

No dia 4 de fevereiro, Billy divulgou o artigo “Dandara, um jogo sobre uma mulher negra que luta contra a opressão chega ao Nintendo Switch”, informando os jogadores sobre o lançamento e focando, como o título sugere, no fato de o jogo ter um protagonista negro lutando contra um regime opressor.

O que pareceu especialmente estranho no artigo é a suposição de que a aparência e o cenário do jogo do protagonista são “tentando reforçar o impulso da esquerda para ter mais protagonistas negras que não precisam de um homem e podem salvar o mundo da opressão”E que a reação positiva ao trailer vem dos brasileiros torcendo por uma incorporadora local. Ele também usa o jogo 99 Vidas (não Vitds) como exemplo desse comportamento.

Os exemplos para basear tais argumentos são uma captura de tela de alguns comentários do Youtube e seus próprios 99 Vidas revisão, bem como a pontuação agregada para 99Vidas.

Os exemplos e opiniões parecem definitivos o suficiente para um espectador de fora apenas concordar e colocar outro título para negar o voto da carteira porque ceder apenas por si só, sem qualquer coerência ou sinergia com o jogo, é uma tática barata que não deveria receber incentivo , e é aí que o artigo traz a ideia errada, e perde o foco por uma milha náutica.

Embora eu entenda perfeitamente de onde vêm seus argumentos e possa citar alguns exemplos de mal implementado, mal escrito* ou simples forçado diversidade eu mesmo, Dandara é um caso raro em que não se destina nem se destina a ser um jogo de promoção da agenda. Nem por uma bajulação agressiva de um grupo falastrão, nem por pontos de piedade na internet, nem mesmo para ser acordado pra caralho. Da inspiração ao design, à implementação e ao produto final, Dandara (o personagem) não faz parte de uma mensagem, campanha ou ideologia, faz parte do mundo do jogo e de suas inspirações…

…e nada mais.

Revolução Homeopática, Referências Concentradas

Pesquisando sobre o desenvolvimento do jogo, descobri que as ideias originais e a inspiração poderiam ser interpretadas como uma mensagem fortemente política/histórica do jogo, mas à medida que os desenvolvedores cimentavam suas prioridades, isso foi se diluindo cada vez mais até que qualquer tema “incendiário” fosse realmente traduzido em nada mais que referências à cultura e à história brasileira.

Esta entrevista (em português) é provavelmente a melhor fonte sobre a filosofia do jogo e as motivações do desenvolvedor (não sei quão bom é o Google Translate quando se trata de português, mas experimente).

Os desenvolvedores falam sobre o desenvolvimento do jogo e como a ideia de trazer temas do seu entorno e história foi sendo gradativamente acrescentada ao jogo, até que focaram na figura de Dandara, uma das líderes de um campo de refugiados para escravos fugitivos, e lançaram a ideia da escravidão como tema forte para o jogo. NO ENTANTO, à medida que o desenvolvimento avançava, o foco mudou cada vez mais para a jogabilidade e sua mecânica única. Nas próprias palavras do desenvolvedor:

“A ideia é que o jogo seja focado na jogabilidade. É sobre exploração e lutas, sem muito texto. Falar com NPCs não é o fator principal, a exploração e a mecânica são. Dandara nasce no início do jogo: assim que você aperta o botão Iniciar, sua história começa a se desenrolar.”

Eles reforçam essa visão posteriormente na entrevista:

“Estamos tentando evitar muita conversa, porque isso influencia na interpretação do jogador e o jogo é focado na descoberta. Claro, o jogador pode ignorar tudo e apenas curtir a jogabilidade, mas também é livre para buscar outros significados na história. Como o jogo é mais imagético, você pode tirar muitas conclusões dele”

O cenário, com seus gráficos excêntricos e sistema de movimento incomum, também poderia ser acusado de transmitir algum tipo de mensagem política, com o big geral face como um vilão. E isso também vem de uma direção diferente: mesmo quando o entrevistador tentou comparar o cenário do jogo com o mundo opressivo apresentado em “1984"E"Fazenda de animais”, o desenvolvedor descarta a referência e dá uma visão diferente do cenário:

“É mais uma comparação tardia do que uma inspiração anterior: não foi utilizada no início do desenvolvimento. E se compararmos com o ‘Big Brother’ de 1984, a influência não está no mascaramento e encobrimento de aspectos para fazer algo do seu jeito. A opressão não é exatamente por censura, mas vai num sentido mais amplo de transformar o próprio mundo em uma ação física”**

O foco na jogabilidade e sua importância se repete em pelo menos dois de outros entrevistas, e embora tenham usado o antigo “Somos homens brancos, então não podemos fazer um jogo sobre escravidão porque não estamos próximos o suficiente do assunto” em um deles, logo desviam a atenção de volta para a jogabilidade.

É bastante claro que eles veem este jogo como algo que deve ser valorizado pela forma como ele é jogado, muito mais do que qualquer outra coisa, e muito menos pela mensagem percebida que ele pode transmitir.

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Se mesmo após as múltiplas alegações descartando qualquer mensagem de “acordado” não houver evidência suficiente de que a cor da pele do personagem é mais uma referência do que um aceno a qualquer movimento ou controvérsia atual, vamos ver sua inspiração e o que restou dela no jogo.

O próprio nome do jogo e do protagonista é uma referência parte histórica e parte folclórica: “Dandara” foi o companheiro da figura histórica do século XVII “Zumbi dos Palmares”***, líder do Quilombo dos Palmares (refugiado/aldeia conhecido por receber escravos fugitivos e lutar contra as forças que tentavam recapturá-los). Conhecida como agricultora, caçadora, estrategista e exímia capoeira, conta-se que lutou ao lado de homens e mulheres nas incursões e defesas comandadas pelo Quilombo. A documentação sobre ela é tão escassa, porém, que é difícil separar história de história. Ainda assim, tanto ela quanto Zumbi são figuras apresentadas como o arquétipo do “Combatente da Liberdade”, reverenciado não apenas por grupos ligados à cultura negra e à luta contra o racismo, mas por grupos que enfrentam qualquer tipo de repressão ou injustiça social.

No jogo, porém, tudo o que resta desse pano de fundo é o nome, a cor da pele e o fato de ela lutar pela liberdade (e uma “liberdade” bem abstrata: não há muito diálogo no jogo fazendo referências diretas à escravidão ou semelhantes). É mais fácil associar Onimusha's Nobunaga com o senhor da guerra japonês do que ambos Dandaras. E ele luta com Jean Reno!

Além disso, a maior parte da equipe de desenvolvimento nasceu e vive em Belo Horizonte. De acordo com estatísticas apresentadas no local da prefeitura, mais de 37% da população se autodeclarou parda e quase um décimo se declarou de etnia negra, portanto ter um personagem negro poderia ser uma referência tanto ao personagem quanto à população de sua cidade natal.

Aliás, em um nível nacional, essas estatísticas são de 43,42% e 7,52%, respectivamente: há mais não-brancos do que brancos no Brasil, mesmo que por uma margem ínfima. Compare-o com os EUA, onde o mais de 72% da população identifica-se como branco e menos de 13% como afro-americanos, e o cenário muda: não é “empoderar uma minoria” ou “agradar” quando a distribuição é bastante uniforme em ambos os cenários populacionais possíveis utilizados.

Tropeçando em uma nação sem direção

Para mim, mais do que tudo, o visual do jogo traz bastante personalidade e, de forma abstrata, um aperitivo da história brasileira, e isso é algo que, se bem feito, pode adicionar um charme extra a um jogo e inspirar as pessoas procurar mais de uma cultura estrangeira. Como Guerreiros da dinastia para a cultura chinesa, Onimusha para o período Sengoku do Japão, etc.

Na verdade, esta pequena “reviravolta regional” está a tornar-se num dos pontos de venda para jogos desenvolvidos em países sem uma indústria de desenvolvimento de jogos estabelecida e influenciada. Às vezes é a única maneira de se destacar quando você tem apenas um parágrafo de texto para vender seu jogo e centenas de concorrentes chegando toda semana. Então, Home Sweet Home e Detenção para a Tailândia, DreadOut para a Indonésia, Dia Branco e O Coma para a Coreia, todos tentaram evitar o afogamento em milhares de jogos de terror ou tropos de protagonistas do ensino médio usando sua cultura local. É tão bom quanto a sua implementação, na verdade, e nunca salvará um jogo ruim de si mesmo, mas quanto mais variado o conteúdo e diferentes maneiras de girar e atualizar fórmulas antigas, melhor.

Dandara foi mais sutil do que escrever “a metroidvânia brasileira”, mas tem uma boa quantidade de acenos e homenagens: O NPC Tarsila, por exemplo, baseia-se no trabalho de  Tarsila do Amaral, importante artista do movimento artístico modernista da primeira metade do século XX. Em alguns cenários, você pode ver um quadro com a palavra “garantido”, um pequeno aceno para o Festival de Parintins, onde os partidos que representam os touros importantes para o mito são denominados “Garantido” e “Caprichoso”.

Augusto, o estranho chefe geral, PODERIA ser uma referência aos anos de ditadura militar e “presidentes-gerais”, mas nunca foi abertamente declarado ou aplicado. Quando pequena, a cabeça foi feita pelo artista rotoscopia do próprio rosto!

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E estes são apenas alguns dos exemplos mais óbvios, há muito mais para descobrir. Tudo isso foi feito de forma sutil, e você pode apreciar todo o jogo sem nunca conhecer suas origens. Não é essencial saber, mas acrescenta um pequeno bônus para aqueles que se preocupam com isso (os caras do “você sabia que jogos” poderiam se divertir com isso. Na minha opinião, este é um bom uso do mencionado “cultural especiaria".

O paradoxo do desenvolvedor

Pessoas de diferentes lados de um grande conflito cultural estão cometendo exatamente o mesmo erro de pular as nuances e equações para obter um resultado rápido, não importa quão errado possa ser.

Para dar alguns parabéns ao Billy, o jogo “99 vidas” É bastante medíocre, para dizer o mínimo, mas toda a ideia por trás de seu início é tão nicho que me surpreende que tenha sido vendido sem uma grande isenção de responsabilidade logo abaixo do título. 99 Vidas é um famoso podcast sobre games e cultura pop no Brasil, possivelmente um dos mais populares por aqui. Os personagens são os integrantes do podcast e grande parte dos inimigos e bens são alguma forma de referência a piadas e fatos conhecidos apenas pelos seguidores do programa. É um nicho muito específico e, para o seu público, essas referências foram mais o ponto de venda do que a jogabilidade em si.

[GRANDE AVISO LEGAL AGORA: Eu ouço o podcast que três dos devs que linkei aqui gravam toda semana e sigo alguns deles no twitter, também sigo o dev principal no joymasher e troquei alguns tweets e mensagens de chat com alguns deles. Não sou um amigo pessoal nem nada, mas tenho conhecimento prévio dos caras]

Agora o cenário brasileiro de desenvolvedores de videogames tem uma grande divisão: por um lado, temos muitos desenvolvedores talentosos na área trabalhando para grandes empresas, como EA, Bioware (a propósito, não é culpa deles que a empresa seja uma merda) - um deles, por exemplo, piadas seu ídolo desde a adolescência é Rocco Siffredi. Bethesda e até titãs de filmes em computação gráfica como DreamWorks. Esses profissionais, juntamente com alguns freelancers e empresas terceirizadas, são completamente ignorados pelos jornalistas locais de games e na maioria das vezes tentam evitar dramas e chamar a atenção para fora de sua “zona de conforto”.

Por outro lado, temos alguns indies começando a ganhar fama por jogos bons, se não de nível triplo A, como masher de alegria, com sua inspiração retrô que na verdade se parece com títulos de 8/16 bits, Oniken, Odalo e logo Cromo Flamejante, or aquiris, que após alguns trabalhos terceirizados, fez uma boa homenagem ao clássico Top Gear (com trilha sonora de autoria do compositor do antigo game, também) em Horizon perseguição. Esses jogos ganham uma cobertura decente por aqui, mas são mais famosos fora do Brasil por entregar com competência o que nichos específicos querem ver, seja um jogo retrô onde o desenvolvedor realmente estuda paletas de cores e efeitos de consoles mais antigos para fazer uma experiência autêntica, a adrenalina e a trilha sonora de antigos jogos de corrida clássicos e, se você adicionar Dandara para a lista, plataformas rápidas com exploração.

Isso está moldando lentamente a cena aqui, ganhando fama pela mecânica e estética do jogo, acima de qualquer outra coisa. Sem política, sem tramas cheias de drama, apenas jogos. Talvez seja uma força regional, talvez eles não sejam grandes o suficiente para deixar a fama passar por cima de suas cabeças e começar a ferrar tudo com sua camarilha. Só o tempo irá dizer.

Olhando além do campo de batalha.

Espero ter fornecido provas suficientes para justificar porque penso que o artigo levou a suposições injustas. O que mais me preocupou, porém, foi o quão rápido e fácil foi chegar à conclusão e como ninguém tentou ter um argumento aberto e baseado em factos sobre o assunto.

Para ser honesto, este artigo em especial chamou minha atenção quando estava sendo discutido em um grupo de bate-papo da comunidade de jogos. Também foi para o inferno muito rápido, com coisas como “Já faz um tempo que não sinto tanto nojo de uma mensagem”, “ele está criticando um jogo que não jogou só porque o protagonista é negro e aceito pelo público”,  “Vou marcar este site para nunca mais ver isso”, etc. Ninguém tentou entender o que é o site ou como chegou à conclusão. Não se trata de conteúdos ou reações “problemáticas”, mas de falta de comunicação e, sobretudo, de suposições.

Billy e muitos leitores aqui são veteranos daquele evento de 2014 que só por ter a palavra no artigo provavelmente ativará uma dúzia de bots e a rotina de um milhão de mentes pré-programadas de ignorar qualquer coisa relacionada e dar toneladas de nomes para pessoas relacionadas a isso. Para esses, peço que lembrem o quão ruim foi quando as pessoas foram instantaneamente bloqueadas, ridicularizadas, julgadas e colocadas na lista negra por uma hashtag, uma pessoa que seguiram no Twitter, até mesmo um único tweet ou compartilhamento de uma imagem seria suficiente. Você não precisa ir muito longe: alguns tweets mal formulados e um desenvolvedor de jogos pode ser demitido, sem que ninguém tente verificar, peça para ver o lado da história dessa pessoa, confirmando que a pessoa é realmente tão perversa e prejudiciais ao jogo ou ao que quer que eles façam parte. Como bônus, em qualquer um dos casos mencionados acima, você é instantaneamente considerado nazista.

Considero bastante irônico que um jogo onde “sal” é um conceito importante para seu enredo e cenário tenha tornado as pessoas tão salgadas (inclusive eu). Todos foram repentinamente atormentados por uma seca de informações e decidiram seguir em frente! Billy não procurou os desenvolvedores ou procurou alguma outra fonte antes de atirar, e as pessoas que me indicaram o artigo não procuraram Billy para tentar esclarecer o assunto!

Não quero que os instintos de autodefesa de ambos os lados dessa bagunça fiquem tão tensos que só precise de uma ou duas palavras, uma cor de pele, um tema tangencial ou o que quer que seja para iniciar a rotulagem e espalhar uma noção preconcebida como um fato. . Nunca deveria acontecer assim, nunca deveríamos deixar vencer a tentação da “solução booleana” quando lidamos com pessoas e assuntos complexos. Nem todo mundo é pró ou contra, nem todo mundo quer participar desse tipo de discussão. Às vezes há pessoas no meio, que não lutam pela “liberdade” nem pela “igualdade”, estão apenas no mesmo lugar. Às vezes, eles realmente só querem jogar ou criá-los.


* : É possível que, mesmo que você esteja por fora, você já tenha ouvido falar do canal “diversidade e quadrinhos” e possivelmente de algo ruim. Mesmo assim, peço que não apenas descartem os vídeos vinculados: ignorem os haters.

**: Não é apenas um caso de má tradução, a citação inteira também fazia muito pouco sentido em português.

***: Sei que há polêmicas sobre a figura de Zumbi e a natureza do Quilombo dos Palmares. Ainda não é o ponto e também não é uma informação amplamente ensinada. Nas escolas só se vê a figura do “combatente da liberdade”. Além disso, se você olhar bem, até mesmo os pais fundadores americanos terão controvérsias em suas vidas e histórias contadas sobre eles. Foque no símbolo cultural e não na discussão histórica, ok?

Outro ataque com raiva